Thursday, November 06, 2008



Beleza e Reflexão
Com uma retrospectiva na galeria Tate Modern, de Londres, o brasileiro Cildo Meireles consagra-se como um dos principais nomes da arte contemporânea do mundo

Por Fernanda Lopes

O carioca Cildo Meireles experimenta dias de glória. É o primeiro brasileiro a sentir o gostinho de ver um bom resumo de sua trajetória exposto em um dos templos da arte atual. Até o dia 11 de janeiro de 2009, 80 obras suas, incluindo oito instalações, ocupam a galeria Tate Modern, de Londres, e cravam definitivamente o artista entre os grandes nomes da produção de hoje no mundo. Expor na Tate, para um artista contemporâneo, é o equivalente, no mundo do cinema, a ter um filme incluído no Festival de Cannes. A Tate é palco reservado para poucos. Antes de Cildo, apenas o conterrâneo Hélio Oiticica (1937-1980) havia invadido o endereço assim, sozinho, mas mesmo o nosso ícone neoconcreto só conseguiu alcançar tal feito em junho do ano passado, 17 anos depois de sua morte. "Cildo está entre as grandes referências para a nova geração, não só do Brasil, mas também de fora. Ele ingressou em um plano que escapa um pouco de uma nacionalidade", analisa o crítico Paulo Venâncio Filho. "Nossa produção contemporânea tem aparecido em coletivas internacionais, e o que acontece nesses casos é que os artistas são geralmente vistos apenas com um trabalho. Essa mostra do Cildo rompe com esse padrão ao apresentar um conjunto de suas criações. Isso deve abrir caminho para outros daqui se tornarem conhecidos de maneira mais consistente", completa.

Cildo chega à Tate com tapete estendido e tudo. "Ele é reconhecido como um dos principais nomes que contribuíram para o desenvolvimento internacional da arte conceitual. Ele fez alguns dos trabalhos filosoficamente mais brilhantes, politicamente mais reveladores e esteticamente mais sedutores da produção artística recente", resume Vicente Todoli, curador da exposição em Londres, ao lado do crítico inglês Guy Brett. Aos 60 anos, o artista fecha 2008 com mais duas adições bastante significativas ao currículo. Em fevereiro, ganhou o 7º Prêmio Velázquez, título de prestígio que pela segunda vez é entregue a um latino-americano — a primeira foi em 2005, para o mexicano Juan Soriano. Quase dez dias depois, no início de março, recebeu o Prêmio Ordway, promovido pelo New Museum, de Nova York. Se havia alguma dúvida, de agora em diante pode-se dizer sem titubear: Cildo tem um lugar garantido entre os melhores de qualquer suposta lista internacional.

ARTE SEM BULA
Ele conta que há mais de quatro décadas acontece sempre de um jeito meio parecido. Uma espécie de relâmpago o deixa sem muita escolha senão deixar-se levar pelo impulso. "É quando passa pela sua cabeça uma coisa que você não sabe o que é, não consegue definir o contorno, nada. Só sabe que precisa buscar aquilo", explica. É assim, entre uma tempestade interna e outra, que ele vem construindo um dos mais consistentes e inventivos legados de sua geração. Uma preocupação constante, no entanto, costura sua variada produção, que se desdobra em objetos, instalações e intervenções: a ampliação da idéia convencional de espaço. Diante de uma criação de Cildo, existe sempre o convite intrigante para investigar as possibilidades de novas relações entre o ambiente e os elementos dispostos nele.

Esse forte caráter reflexivo de seus trabalhos faz com que parte da crítica internacional o considere um artista conceitual, mas sua arte não cabe em uma definição única. Suas peças também seduzem o espectador e esbanjam beleza, indo nesse sentido um pouco na contramão dos conceitos mais caros aos principais nomes contemporâneos. "Ele alia contundência plástica ao pensamento. Em obras como Desvio para o Vermelho (feita entre 1967 e 1984, com três ambientes completamente vermelhos e pertencente ao Instituto Cultural Inhotim, em Minas Gerais), o espetáculo não é um elemento negativo como muitos vêem hoje. E, além disso, para usar uma palavra pouco usual na atualidade, trata-se de uma instalação muito bonita", diz o crítico Paulo Sergio Duarte.

Na Tate, ao lado de Desvio para o Vermelho, fica Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola (obra em que o artista pintava frases com críticas ao sistema em garrafas de refrigerante e depois as devolvia para o mercado), de 1970. Para a co-curadora da 28ª Bienal de São Paulo, Ana Paula Cohen, as garrafas, umas das peças mais antigas apresentadas agora em Londres, continuam sendo um estímulo bem pertinente para pensar as práticas artísticas: "Com elas, Cildo falava na existência de circuitos em uma sociedade de consumo. Dessa maneira, ele trazia para a arte a consciência de que os espaços em que a gente vive são expandidos, ao mesmo tempo em que expandia a arte para além de seus domínios".

Depois disso, o artista enveredou por um momento mais crítico, embora tente fugir a todo custo dessa classificação. "Até então eu participava das movimentações políticas da época, mas minha produção se mantinha longe disso. Com o assassinato de Edson Luís (estudante de 16 anos morto durante uma manifestação no Rio de Janeiro, em 1968) pela ditadura e o fechamento de uma exposição no MAM do Rio, em 1969, senti um impulso natural para tratar dessas questões. Foi uma tomada de posição", relembra Cildo. "Mas passei a década de 90 tentando fugir do estereótipo de arte política. Sempre tive problema, uma quase implicância com essa idéia panfletária. Ela reduz o trabalho."
Não é o que pensa o crítico Frederico Morais. "Eu e o Cildo temos uma divergência amigável, afetiva até, porque tendo muito a fazer uma leitura política do trabalho dele, o que não exclui os outros aspectos. Todas as suas obras têm conceito, raciocínio, uma cota de mistério, e ao mesmo tempo são visualmente sedutoras", aponta. Ao menos uma pitada desse espírito está representada na seleção da Tate pela instalação Missão/Missões (Como Construir Catedrais), realizada em 1987. Inspirada nas missões jesuíticas do extremo sul do país, a peça traduz-se em um chão coberto com 600 mil moedas e ligado a um teto com 2 mil ossos por uma coluna de 800 hóstias. "Essa criação marcou a entrada definitiva de Cildo Meireles no cenário internacional, quando foi integrada à mostra Magiciens de la Terre, no Centro Georges Pompidou, em Paris", diz Morais.

Depois de Londres, a mostra cumpre um roteiro que inclui ainda Barcelona, Houston, Los Angeles e Toronto. Grandes centros culturais poderão, portanto, analisar de perto uma obra aberta a muitas interpretações, como bem resume a crítica Luisa Duarte: "Os artistas de hoje que buscam um viés crítico, político ou ético em seus trabalhos deviam ter Cildo como um exemplo de como possuir um conceito forte sem perder de vista a eloqüência da linguagem, sem ser literal. Ninguém precisa de uma bula para entrar em uma obra dele. Elas têm um impacto profundo em quem as vê."


Onde e Quando
Cildo Meireles. Tate Modern (Bankside, SE1 9TG, Londres, Inglaterra, tel. 00++/44/20/7887-8888). Até 11/1/2009. De 2ª a 5ª, das 10h às 18h; 6ª e sáb., das 10h às 22h; dom., das 10h às 18h. Grátis.

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